Depois que acabou o turno, ele voltou a ser uma pessoa comum, pensando em coisas comuns. Registrando o ponto, observou as pessoas eufóricas com o fim de semana. Foi devagar para a catraca da saída, entrou no transporte coletivo em silêncio, observando o estabelecimento se distanciar.
Durante o turno, o tempo é seu inimigo; os itens na esteira são seu objetivo. Tudo precisa estar em seu lugar da melhor forma possível, milimetricamente em suas posições. Na velocidade certa, dá para produzir mais do que nos outros turnos. Sempre pronto para assumir o posto em qualquer etapa da produção, seu ponto forte era a embalagem, um exímio conferente. Sua visão periférica conseguia contar os volumes de caixas com muita precisão. Ainda com a cabeça no serviço, conferiu se não deixou algum ventilador ligado ou uma ferramenta fora do armário. Como sempre, acredita que seguiu todos os procedimentos à risca, divertindo-se ao repetir a cena na mente, até sair do setor e deixar a empresa lá. Conforme o coletivo avançava até o seu destino, uma solidão silenciosa parecia circular sua alma, em busca de uma fresta.
Andou cabisbaixo do ponto até sua casa. Apesar do agito rotineiro da avenida em uma sexta-feira à tarde ser contagiante, não tinha pressa nenhuma para chegar, a cada passo um peso era adicionado em sua áurea.
Com a mão na maçaneta, suspirou um lamento lento. As longas horas longe do trabalho repetitivo eram um tedio, um vácuo sem sabor permeando o espaço entre os mundos. "O que fazer agora?" pensou quando passava pela porta. O hábito era tão forte que detestava os dias de folga, principalmente os que era obrigado a folgar. Estava acostumado a trabalhar até a exaustão, avançando a madrugada. As horas extras nos fins de semana eram o que motivava a voltar para casa.
— Oi, mãe!
— Chegou mais cedo hoje, filho! Que bom! Nossa, você está com uma cara de quem está cansado.
Os outros moradores da casa eram todos membros da família, parentes de sangue, que não compreendiam sua pesada carga horária. Eles não podiam entender, não era pelo dinheiro, mas pelo trabalho, para se sentir útil. Depois do banho, sentou-se na cama. O travesseiro cheirava a sol; sua mãe tinha lavado todas as roupas de cama, tudo perfeitamente limpo e agradável. Procurou algum significado nisso tudo e não encontrou, como se tivesse esquecido o que estava pensando, ficou ali parado, travado durante um tempo sem pensar em nada. "O que fazer? E agora?" essa pergunta invadia sua mente constantemente desde que chegara em casa.
Ligou sua televisão pendurada na parede; extra fina, parecia um quadro de 40 polegadas. Rodou todos os 90 canais procurando por algo interessante, mas tudo era oco e sem sentido. Procurou o controle de seu novo videogame; que ainda estava pagando, sem sucesso no guarda-roupa. Buscou nas gavetas da cômoda. Antigamente, os controles tinham um enorme fio conectado ao console, o que facilitava encontrá-los, além de não precisar de pilha ou bateria. Isso não parecia certo; era trocar um pelo outro, e no fim, o resultado era o mesmo. "Fio ou baterias? Se tivessem todos ordenados numa caixa bem fechada num palete lacrado e etiquetado, daí sim faria todo sentido", pensou ele, lembrando com saudades da rotina diária.
Lembrou que tinha emprestado o controle para o seu primo mais novo, um guri de apenas 10 anos. A felicidade que ele sentiu parecia tão legítima que era invejável. Em pé de frente à cômoda, percebeu que a vida perdeu seu significado na imensidão vazia do nada. Desde que comprara esse videogame, não tinha usado muito, além do jogo de futebol (que era tão realista que perdera a graça). Não conseguia ter paciência para começar o outro jogo de aventura com um milhão de opções de armas e 50 finais diferentes, tantos personagens e opções de jogos que dava preguiça até de imaginar.
Ali não era o seu lugar; o seu quarto não era o seu posto de trabalho. Na verdade, tudo era uma distração frustrante, nada daquilo parecia ter sentido. Tudo parecia tão tolo e insuficiente. Uma angústia tomou conta do seu coração; detestava não estar produzindo, era um inútil longe da firma. Como ficar um dia inteiro sem embalar uma única peça? Sem conferir uma caixa? Como viver sem uma função específica designada pelo procedimento operacional padrão?
Ajoelhou-se ao lado da cama, afundou a cabeça na cama e começou a chorar. Sentia falta do uniforme com cheiro de graxa, do ruído das máquinas, a fumaça das empilhadeiras. Tudo que ele queria era estar lá, trabalhando. Não era pelo dinheiro; era pelo fato de fazer algo importante, mesmo que não fosse tão essencial assim. Desde que fosse uma função na linha de montagem, já era suficiente. Seus longos e difíceis dias de folga eram uma verdadeira tortura.
Levantou do chão com o ruído de seu telefone; o barulho ecoava por todo o quarto. Ao atender, enxugando as lágrimas dos olhos, percebeu uma voz familiar
— Boa noite! Posso falar com o Marcos?... Alô?
Era uma voz rústica distorcida pelo cigarro, ele sabia quem era, mas não tinha certeza, poderia ser qualquer pessoa.
— Sim, aqui é o Marcos!
Talvez fossse engano ou alguma cobrança ou… talvez fosse uma pessoa mais próxima.
— Oi Marcos, tudo bem ? Sou eu!!!
De repente seus neurônios trouxeram a imagem do interlocutor num piscar de olhos.
— Oi, eu estou bem — respondeu Marcos sentindo um calor no peito e o sorriso se estendendo de um canto ao outro da boca.
— Marcos, chegou bem em casa?
— Sim, mas é estranho voltar tão cedo — O sorriso permaneceu, sentiu uma dor no braço esquerdo, uma sensação de calor começou a se espalhar no peito, seguida por uma leve tontura e um suor frio, estava completo novamente.
— É assim mesmo, depois você acostuma… eu realmente precisava dessa folga, aproveite para descansar, principalmente por…
— O seu descanso é merecido, se eu estivesse na sua posição eu nem sei o que faria, como você pode tolerar certos funcionários?
— Ser supervisor tem seus desafios.
— É eu imagino como deve ser… é… hum…
Mesmo desejando expressar prontidão, Marcos encontrava dificuldades para falar devido a palpitação na garganta. Respirou e pensou no tamanho do privilégio que era receber uma ligação dessas, tinha que deixar claro a disposição de fazer horas extras no fim de semana.
— Que bom que você me ligou… por que eu…
Marcos foi interrompido pelo seu chefe.
— Estou ligando para avisar que a empresa ficará fechada por tempo indeterminado devido à pandemia. Você está a par da situação global, certo?... Marcos? Está ouvindo?...
O silêncio misterioso pré supôs uma concordância.
— Então não há previsão de retorno, todos os funcionários devem ficar em casa. Era para termos parado na semana passada, mas tínhamos um prazo apertado para cumprir, porém agora a empresa será penalizada se não fechar as portas … alô ?... Marcos? Alô… Você está me ouvindo?
Nenhum comentário:
Postar um comentário